A conjuntura do novo coronavírus (Covid-19) têm afetado a vida das pessoas não só no âmbito da saúde física, mas também na mental. Uma pandemia representa uma ocorrência inusitada que pode causar estresse, medo, incerteza e desgaste emocional para qualquer um, mas o impacto psicológico nas crianças e adolescentes merece cuidado redobrado. Nesse sentido, em decorrência  do Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado anualmente em 10/10, o pediatra e psiquiatra da Infância e Adolescência do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) Orli Carvalho destaca a importância de abordar  o bem-estar psicológico dos jovens diante da pandemia.

Orli avalia que devemos prestar atenção ao tema, que faz parte das medidas para enfrentar a pandemia e para prevenir a decorrência de uma crise de saúde mental na população, conforme orientado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef – Espanha) em seu relatório  de junho de 2020, Saúde mental e infância no cenário da Covid-19. “Quando pensamos nos efeitos da pandemia sobre a saúde mental de crianças e adolescentes é fundamental que consideremos que são seres em desenvolvimento e a forma como compreendem e explicam o mundo vai variar segundo o estágio em que se encontram, suas experiências anteriores, sua capacidade cognitiva e também da cultura em que estão inseridos. Isso é fundamental para podermos analisar adequadamente esse impacto diante de um ambiente com novos estressores”, explica Orli Carvalho.

As diferentes mudanças familiares, as demandas escolares em um novo cenário de aprendizagem, a perda de intimidade em muitos casos e a introdução abrupta de novos hábitos – mesmo com a flexibilização da quarentena -, ainda representam um grande desafio, e adaptar-se a isso pode ser um processo angustiante. Sobre os sinais de alerta para que os pais analisem se seus filhos possivelmente estejam precisando de acompanhamento psicológico, no contexto atual da pandemia,  o pediatra e psiquiatra comenta “devemos ter cautela para entender que essa situação é assustadora para toda a sociedade, é normal e esperado ter medo e ficar preocupado. O alerta surge quando esses sentimentos ocupam a vida das crianças e adolescentes, atrapalhando continuamente o seu desenvolvimento e o seu cotidiano”.

DESAFIOS NA INTERNET: ADOLESCENTES NO CONTEXTO DA COVID-19

Em geral, os mais jovens são internautas mais assíduos do que os adultos, portanto, no cenário excepcional da atual pandemia, o consumo da internet tem aumentado a sociabilidade digital dessa população, considerando desde uma visão geral, apenas as aulas online e a conservação dos seus relacionamentos por meio de redes sociais e aplicativos.

O incremento da exposição na internet, trouxe também um aumento na vulnerabilidade dos adolescentes aos desafios online que envolvem algum tipo de agressão. Como exemplo disso, nas redes sociais encontramos desde inúmeros vídeos de adolescentes ‘brincando’ de derrubar um no chão – popularizada entre os jovens como ‘quebra-crânios’ no inicio da pandemia -, até a viralização, em setembro, de uma nova prática de ‘lixar’ os dentes com lixa de unha para ‘deixá-los mais uniformes’, tem ligado o sinal de alarme entre profissionais da saúde, pelos riscos que isso pode causar, enquanto são vistos como piada e eventos a serem filmados e postados, por muitos adolescentes no mundo.

Segundo Orli Carvalho “sobre a sociabilidade digital que vem sendo experimentada e liderada pela geração ‘nativa digital’, destacam-se alguns elementos que podem explicar o aumento dos desafios virtuais: hiperexposição, diluição de fronteiras público-privadas-íntimas e espetacularização de si. Consideramos os desafios como práticas assumidas como ‘brincadeiras ou games’ lançadas por alguma microcelebridade que estimula a realização de tarefas a serem cumpridas, filmadas e compartilhadas para a afirmação de seu ‘eu digital’; prescrições, contudo, que muitas vezes estimulam autolesões ou provocam danos geralmente desconsiderados pelos adolescentes”.

Conforme ensaio divulgado, em maio de 2020, pela Revista da Associação Brasileira de Saúde Coletiva Ciência e Saúde Coletiva, “A partir de uma pesquisa realizada no Google Trends foi possível observar que a busca pelo termo “desafios online” (challenges online) cresceu bastante no mundo inteiro após a medida de isolamento social ter sido implementada”.

É importante destacar que nem todo adolescente cede a tais desafios. “Devemos ter cuidado na tentativa de explicação de um comportamento de um grupo social. Ainda que apresentem homogeneidades e aproximações diversas, as peculiaridades individuais se mantém e não devem ser desconsideradas nessa análise. Considerando as múltiplas adolescências que ocupam simultaneamente os mundos online e off-line, podemos pensar que algumas características encontradas nesses indivíduos podem nos ajudar a entender essa tendência”, ressalta Orli.

A adolescência é uma fase de transição para a idade adulta, em que os grupos tendem a assumir um maior protagonismo em uma rede que potencializa as trocas relacionais entre os próprios pares, no processo de construção de um novo rol social. “Com um sistema cerebral ainda em maturação, as ponderações entre causa e consequência recebem uma maior pressão externa, gerando vulnerabilidades em diferentes âmbitos do cotidiano. Assim, podem ser explicados os diversos desafios experimentados em nossas sociedades ocidentais, objetivando uma demonstração pública de coragem, protagonismo e autonomia”, diz Orli Carvalho sobre a motivação dos adolescentes a se gravarem fazendo desafios para as redes sociais.

O DESAFIO DE FALAR COM OS FILHOS

Para o pediatra e psiquiatra do IFF/Fiocruz, “reconhecer as potencialidades das plataformas online é essencial, é difícil pensar que hoje haja responsáveis por adolescentes que não compreendam a relevância do ‘mundo virtual’. Valorizar esse mundo como real permite que um diálogo franco e ético seja validado, sem o destaque para os conflitos geracionais. Mais do que o impedimento, as famílias precisam buscar conciliações sobre o uso de telas e tecnologias, definindo horários e limites, e destacando as exigências que seguem existindo off-line. Além disso, considerar que aulas e tarefas acadêmicas, ainda que realizadas através de dispositivos tecnológicos, não são atividades de lazer”.

Diante desses apontamentos, o mais importante “é que os adultos tentem a mediar a compreensão dessa nova realidade junto com seus filhos, pois mesmo que eles tenham influência de seus grupos e celebridades, terão os seus responsáveis como um exemplo. É claro que o conhecimento digital dos filhos tende a superar o de seus responsáveis, porém, isso não deve ser um impeditivo para uma troca relacional em que um novo modelo de aprendizado venha a ser construído”, conclui Orli Carvalho.

Fonte: Portal Fiocruz por Mayra Malavé Malavé